terça-feira, 21 de setembro de 2010

Vincent


Então, com uma cicatriz na mão ele me deixou. Deixando na minha cabeça as memórias do dia em que ele chegou. Ele é o Medo, Azar e Pesadelo, não havia outra forma dele entrar numa casa se não fosse pedindo ajuda, era ainda pequeno e muito doente. Um ombro luxado, uma pata deslocada, alguns dedos faltando, o femo estraçalhado e o pelo desgastado por uma vida fragmentada. Ele só chorava, passava a noite chorando dentro de uma caixa de sapato, parava assim que eu me encontrava com seus olhos verdes. Ele me olhava e não soltava mais uma nota de dor, se eu desse um passo pra trás – sei disso porque eu já havia testado – ele choraria muito mais alto.
Odeio dependência, odeio estar presa a algo. E além do Medo, Azar e Pesadelo ele me foi à prisão, a reclusão e a dor. Eu, recém saída dos quartos escuros, com os olhos ainda mal acostumados com a clareza novamente vista, tinha que voltar a ficar ali, de novo. Poderia ser ele que não conseguisse mais andar, ou ele que não soubesse pular a caixa. Mas era eu que estava ao seu lado a todo tempo, esperando isso acontecer.
Odeio cantar, e mesmo assim cantei muito ao seu lado – ele só dormia quando ouvisse uma música. E mesmo com todas as falhas, com toda a rouquidão, com todos os calos na garganta que eu tenho, era ele. Só ele que gostava de ouvir aquela voz. Era ele que encostava a cabeça no meu ombro e dormia tranqüilo, uma noite dele mesmo.
Ele não era só o Medo, Azar, Pesadelo, Prisão, Dor, Reclusão e Depressão. Além disso, ele era a sombra e também à noite, carregava ela inteira em seus pelos pretos e alguns fios brancos que representavam as estrelas. Eu sofri, sofri com meu próprio sofrimento em forma de gato bem sobre meu colo. Sofri com sua necessidade de atenção, com sua dependência e com seus lamentos incansáveis.
O tempo, que é a cura de quase de tudo, trouxe com ele a confiança, a amizade, a lealdade, a meiguice e todas as coisas que fizeram dele o meu medo favorito, o meu azar favorito, o meu pesadelo favorito, a minha prisão favorita, a minha dor favorita, a minha reclusão favorita, a minha depressão favorita: Ou os únicos que eu realmente gostasse.
Ele também é Culpado: Por eu ser apaixonada por preto, por esperar sempre de uma sombra que seja a minha, por não ter mais medo de escuro – Ele era as duas coisas.
No final das contas, ele não era meu: ele era eu. Sempre foi. Sempre foi tudo que eu faço, sempre foi tudo que eu penso, sempre foi tudo que eu.
E assim, como criança no levantar da manhã, eu acordei. Não tenho mais medo do escuro, ele se foi. Não tenho mais azar. Não tenho mais dor, não tenho mais pesadelo. Não tem mais noite, não tem mais sombra – A luz da escuridão não foi chegou para me salvar – Agora só tem uma coisa: Saudade.

6 comentários:

  1. "Poderia ser ele que não conseguisse mais andar, ou ele que não soubesse pular a caixa. Mas era eu que estava ao seu lado a todo tempo, esperando isso acontecer. " Muito bom.

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  2. eu, sinceramente, não consigo dizer nada de tanto que me emocionou. só isso.

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  3. COMO ASSIM ? Ele foi embora sem eu conhecê-lo.. ;-;
    achei um dos seus melhores textos, mils. Muito lindo mesmo - Flávia

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  4. :(
    fuck.
    eu sei como é.
    vou chorar.
    fuck.

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  5. No final das contas, ele não era meu: ele era eu. Sempre foi. Sempre foi tudo que eu faço, sempre foi tudo que eu penso, sempre foi tudo que eu.

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